Desde outubro de 2011, quando forças apoiadas pela NATO derrubaram o longo governo autoritário de Muammar Gaddafi no contexto da Primavera Árabe que abrangeu vários países do mundo islâmico, que a Líbia tem vivido um período caótico de instabilidade social e política.
A Líbia chegou a ser um caso de sucesso entre os países africanos, visto que os seus habitantes beneficiavam de um dos mais elevados níveis de vida do continente, de sistemas de saúde e educação gratuitos, e de uma imensurável riqueza em petróleo. Contudo, a repressão política era evidente, através da perseguição e prisão de dissidentes, e erradicação dos vestígios de constitucionalidade. Para além disso a corrupção era também notória dado o famoso enriquecimento de Gaddafi e do seu círculo íntimo, objeto de grande destaque nas conferências internacionais em que participava.
Atualmente, o país está imerso numa guerra civil entre grupos armados rivais que disputam o poder na era pós-Gaddafi. São dois os principais centros de poder político, e diversos os atores internacionais que os apoiam.
Na capital, Trípoli, está sediado o Governo de Acordo Nacional (GAN), reconhecido pela ONU. Este é encabeçado pelo primeiro-ministro Fayez al-Sarraj e resultou de negociações conduzidas pela ONU em 2015 com vista à formação de um governo de unidade nacional. Vários políticos e milícias apoiam declaradamente o executivo, mas este não tem sido bem-sucedido na expansão da sua soberania para além da capital.
Um ano antes, após eleições legislativas altamente disputadas em 2014, os governantes em Trípoli recusaram-se a ceder poder ao parlamento recém-eleito. Assim, o órgão legislativo deslocou-se para Tobruk, uma cidade portuária situada 1,000 km a leste da capital. Apesar de, em 2015, alguns dos seus deputados terem declarado apoio ao GAN, a maioria tem-se recusado a reconhecer o executivo apoiado pela ONU, bloqueando esforços no sentido da realização de novas eleições e defendendo a causa do General Khalifa Haftar, homem-forte que atualmente lidera o Exército Nacional Líbio (ENL) e que é visto como o mais proeminente líder da oposição. As suas milícias ocupam atualmente a maior parte do território líbio e suspeita-se que controlem a maioria das reservas de petróleo. O GAN tem vindo a acusar Haftar de alegados crimes de guerra, tendo por base os vestígios de assassinatos em massa identificados numa das suas antigas fortalezas.

Apoios Internacionais
A questão líbia está longe de se cingir aos seus atores locais e regionais, contando com interferências e ingerências de diversos estados. O secretário-geral da ONU, António Guterres, já fez questão de informar o Conselho de Segurança de que a interferência externa no conflito líbio alcançou níveis sem precedentes.
O GAN, para além do já referido apoio da ONU, tem o aval da generalidade do mundo ocidental, mas o seu principal aliado tem sido a Turquia que já contribuiu efetivamente com o envio de tropas e drones. Para além disso, suspeita-se que Ankara terá contratado forças sírias, mais precisamente 10,000 soldados, algo que o chefe do governo de unidade nacional, al-Sarraj, não nega. Foi, aliás, graças ao auxílio da Turquia que Trípoli acabou por resistir a 14 meses de pressão por parte do ENL para tomar a capital. O exército do general Haftar recuou na sua ofensiva no início do mês de julho.
Trump e Erdogan, líder do executivo turco, têm mantido contactos com vista a reforçar o apoio ao GAN, e a alcançar uma solução estável para a Líbia.
Já Khalifa Haftar beneficia do apoio dos Emiratos Árabes Unidos e Egito, tendo o líder do ENL visitado também a Arábia Saudita nas vésperas da sua incursão sobre Trípoli. O Egito fez questão de avisar que, caso algum ataque com apoio turco fosse efetuado para tomar a cidade de Sirte, antigo reduto de milícias do ISIS atualmente ocupado por Haftar, interviria diretamente com o seu exército.
O general tem mantido ainda vários contactos com a Rússia, que inclusivamente vetou no Conselho de Segurança a condenação da ofensiva lançada sobre a capital. Apesar de o negar, Moscovo é acusada por monitores independentes da ONU de ter enviado 1,200 mercenários para reforçar Haftar.
Por fim, é igualmente suspeita a relação entre Emmanuel Macron e o general, dado que o presidente francês foi o primeiro líder ocidental a convidar Haftar para conversações de paz, tendo Paris lançado ataques aéreos em apoio ao ENL.
Assim, o conflito na Líbia tem sido responsável por divergências graves no seio da NATO, nomeadamente entre França e Turquia que se encontram em lados distintos das barricadas. Paris já chegou a acusar Ankara de ter violado o embargo de armamento imposto pela ONU na Líbia.
Impactos humanitários do conflito
Segundo dados da ONU, cerca de 200,000 líbios se encontram deslocados internamente e 1,3 milhões a necessitar de ajuda humanitária. Os raptos e sequestros são recorrentes, o custo de vida disparou, e há falta de medicamentos e energia elétrica. Um contraste notório em relação ao país que chegou a ser visto como bem-sucedido economicamente.
Entre abril e junho deste ano contaram-se 102 civis mortos e 254 feridos, o que se traduz num aumento de 172% relativamente ao primeiro trimestre de 2020.
Para agravar a situação, em plena crise pandémica da Covid-19, muitos dos alvos escolhidos para abater de ambas as partes são infraestruturas médicas, ambulâncias, e profissionais de saúde.
Fontes: BBC, Al-Jazeera, TRT World, Middle East Monitor